Dilexi te – Publicada a primeira Exortação Apostólica do Papa Leão XIV

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Dom Lindomar Rocha Mota
Bispo de São Luís de Montes Belos (GO)

O Santo Padre, Leão XIV nos envolve numa carta fraterna, pedindo, desde o início, que Dilexi te ajude a Igreja a servir os pobres e a conduzi-los a Cristo. O tom é de convocação universal, como quem reúne a família antes de partir em missão. 

O prólogo, centrado no “Eu te amei” do Apocalipse 3,9, dirigido à comunidade de Filadelfia “de pouca força”, dialoga com a promessa do Magnificat, que exalta os humildes.

Não é um preâmbulo estético, mas uma chave de leitura gritando que o amor de Cristo preferiu o pequeno.

A arquitetura interna do texto confirma esse itinerário. O índice deixa ver um percurso que vai da libertação concreta — “libertar os cativos”, “testemunhas da pobreza evangélica”, “instrução dos pobres”, “acompanhar os migrantes”, “ao lado dos últimos”, “movimentos populares” — à leitura histórica de um século de doutrina social, passando pelo discernimento das “estruturas de pecado” e culminando na afirmação dos pobres como sujeitos. 

Não são capítulos temáticos justapostos. Eles formam uma narrativa orgânica, na qual a contemplação se desdobra em instituições, e a liturgia transborda em justiça.

É uma preferência que reorganiza a nossa pastoral, a nossa linguagem e o nosso orçamento. A costura com a Exortação apostólica Dilexit nos ilumina o caminho e contempla o Coração de Jesus que se identifica com os últimos. A partir daí somos chamados a ser instrumentos de libertação; o amor contemplado se faz amor praticado, e o culto desemboca em atenção e cuidado. 

Há também uma delicadeza de sucessão espiritual. O texto nos conta que Papa Francisco preparava uma exortação sobre “o cuidado da Igreja pelos pobres e com os pobres”, e que esse desígnio é recebido como herança e assumido no início de um novo pontificado. O fio que passa de mão em mão não é apenas doutrina, é um desejo que todos percebam a ligação forte entre o amor de Cristo e o chamado a nos tornarmos próximos dos pobresNesta passagem, nós, leitores, somos discretamente introduzidos como herdeiros convocados para um recomeço. 

Depois, o documento finca estacas bíblicas. Retorna à sarça de Êxodo: “Eu vi… eu ouvi… eu desci… Agora, vai: eu te envio”. A gramática de Deus é a de um ver que escuta e de um ouvir que desce; e, se ficamos indiferentes ao clamor, não estamos neutros — pecamos contra o coração de Deus. Reconhecer essa gramática nos impede de transformar a caridade em filantropia e a missão em projeto. Aqui, a Escritura acende uma responsabilidade concreta: identificar-nos com o coração de Deus e traduzi-lo em presença, justiça e pão. 

O texto também situa “Dilexi te” dentro da grande travessia eclesial recente. O Concílio Vaticano II leu a própria missão sob o sinal do bom samaritano; onde a opção preferencial pelos pobres “muda a história”, porque nos descentra da autorreferencialidade e reabre o ouvido para o clamor. O que se pede de nós não é uma opinião, mas uma conversão pastoral

No coração do itinerário, a Tradição aparece viva. Os Atos dos Apóstolos são lidos como gênese de uma Igreja que inventa diaconia para que ninguém fique sem mesa; Estêvão, primeiro mártir, nasce precisamente desse lugar de serviço. E, dois séculos adiante, São Lourenço ergue os pobres como “tesouros da Igreja”, ensinando-nos que Cristo está onde o necessitado nos olha. É uma memória que julga o presente: ministérios e estruturas só se justificam quando guardam o tesouro que o diácono apresentou ao império.

Entre esses gigantes da fé, o Papa introduz a nossa Santa Dulce dos Pobres, mulher de confiança evangélica concreta, capaz de transformar o pouco que dispunha em suficiente para todos. 

O documento não se contenta em nomear os pobres, mas deseja restitui-lhes a condição de sujeito

Neste movimento, igualmente, decisivo, Dilexi te dialoga com Aparecida para lembrar que a opção pelos pobres está “implícita na fé cristológica” e não é um apêndice meramente sociológico, mas consequência da confissão do Deus que “se fez pobre por nós”. E, ao insistir que comunidades marginalizadas são sujeitos que geram cultura, celebram e comunicam a fé desde os seus valores fundamentais. A Exortação desloca a Igreja do “para” o pobre ao “com” os pobres. Aqui, a tradição latino-americana encontra ressonância universal e abre passagem a uma eclesiologia de mesa aberta, inclusiva, onde não falte lugar a ninguém.

Há, ao longo das páginas, uma pedagogia do afeto que ganha forma. Renova-se a insistência em que a Igreja se cura servindo e se rejuvenesce inclinando-se; quando a caridade sai das intenções e entra na administração, no calendário, na homilia e na rua, o pobre volta a respirar

Colocando “o pobre no centro”, Dilexi te repete, como refrão, a urgência de ver, ouvir, descer, enviar; acolher, partilhar, instituir, defender, como fundamento para uma santidade que não é abstração, mas estrutura reorganizada para que ninguém fique de fora. 

Ao final, fica a impressão bonita de que “Dilexi te não nos entrega lemas, mas critério. O amor primeiro de Cristo (Eu te amei) torna-se medida do nosso amor; a mesa da Eucaristia pede a mesa dos esquecidos; a opção pelos pobres desideologiza a Igreja porque a reconduz à Revelação.

Exegética e historicamente, Dilexi te não pretende inventar um caminho. Em vez, ela costura Ap 3 e Lc 1, Êxodo e Atos, Ambrósio e Aparecida, Concílio e caminho sinodal. Ao fazê-lo, devolve à Igreja a sua forma evangélica num povo que adora Deus no pão partido e O encontra de novo no pão repartido; um corpo que se deixa mover pelo Espírito para descer às encruzilhadas onde a humanidade sangra e a esperança ainda é minúscula. Recebê-la bem é deixar que esse sopro reordene o nosso passo — para que, a quem tem pouca força, a nossa vida sussurre o que o Senhor já disse: “Eu te amei”.

Recebemos, assim, não um documento para ler, mas um programa espiritual e pastoral: ver como Deus vê, escutar como Ele escuta, descer como Ele desce, enviar-se como Ele envia. Assim, juntos, — nós, Igreja inteira, retomaremos aquela experiência do início e diremos aos que têm pouca forçaEu também te amei

Leia a Exortação Apostólica Dilexi te na íntegra, CLIQUE AQUI.

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