Dom Lindomar Rocha Mota
Bispo de São Luís de Montes Belos (GO)
No início desta semana, quando Jesus aborda, em Mateus 23, a gravidade da hipocrisia, vem-me ao presente a leitura Victor Hugo, cujo comentário já escrevi algures.
Em Os trabalhadores do mar, Hugo nos apresenta o senhor Clubin. Em suas palavras, um homem reputado por todos como íntegro, funcionário exemplar, o homem de confiança; aquele a quem ninguém suspeita. Ele tinha a “reputação feita de probidade sólida”, de “sobriedade, prudência e ordem”. Entretanto, ele era um hipócrita. No capítulo sexto da sexta parte, intitulado: Alumia-se o interior de um abismo, o verdadeiro eu de Clubin é revelado. O seu interior era vazio, escuro e profundo. Ele é uma caverna de maldade e contradição.
Clubin se admira de si mesmo. Ele contempla sua imagem pública como um pintor contempla sua obra. O hipócrita sente-se artista do engano, e isso lhe dá prazer estético. Ele não é apenas um traidor, é um encenador, um dramaturgo da própria vida. A sua hipocrisia não nasce da fraqueza, mas de uma estratégia deliberada. Ele investe em construir uma imagem. Diferente de um pecador comum, ele é um calculador da virtude, um arquiteto da própria aparência. Hugo quase sugere que o hipócrita é um artista perverso que domina a arte de simular o bem.
Hugo descreve o hipócrita como alguém que encontra na falsidade uma espécie de deleite íntimo. O hipócrita não sofre por mentir, ao contrário, sente-se superior por manter a mentira. O que dá segurança a Clubin não é a sua bondade, mas o fato de todos acreditarem nela.
Esse sentimento profundo do hipócrita lhe dá certo prazer por controlar a percepção dos outros. O medo de ser descoberto é menor que a estranha alegria em ver os outros enganados.
Clubin é duplo. Ele “parece ter todas as virtudes”, mas guarda dentro de si cálculo, cobiça e traição. Exteriormente – prudência, calma, justiça, no Interior – ambição, falsidade, egoísmo. Este aspecto psicológico é profundo no hipócrita, ele tem consciência de que não é o que aparenta, mas em vez de sofrer, ele se compraz na própria duplicidade. Clubin se admira de si mesmo.
Essa duplicidade evidencia que a hipocrisia não é só um defeito moral, mas uma contradição existencial: viver para fora aquilo que não existe dentro. O hipócrita é, por definição, um indivíduo “rachado em dois”.
Esse retrato literário encontra um eco na denúncia de Jesus. Em Mateus 23, a hipocrisia não é apenas falha esporádica, é projeto. “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! Fechais aos outros Reino dos Céus, mas vós mesmos não entrais, e não deixais entrar aqueles que o desejam” (Mt 23,13). A fachada torna-se dispositivo de poder e engendra guardiões da porta que não entram e não permitem entrar. Prossegue, Jesus: “Percorreis o mar e a terra para ganhar um prosélito; e, quando o conseguis, o tornais filho da Geena duas vezes mais do que vós” (Mt 23,15). A expansão do prestígio substitui a conversão do coração. Daí a ironia severa: “Guias cegos… insensatos e cegos” (Mt 23,16.19), quando a casuística da honra (“jurar pelo ouro do templo”) é preferida ao essencial (Mt 23,16-22). A denúncia é a mesmo que Hugo expõe em Clubin: exterior brilhante, interior turvo.
A crítica evangélica não mira a Lei nem o zelo religioso, mas a inversão de finalidade onde as boas práticas são convertidas em cenografia de prestígio. Os fariseus eram, na expressão de Cristo, sepulcros caiados: belos por fora, mas por dentro cheios de podridão” (Mt 23,27).
Jesus desvela a hierarquia pervertida das ações ao dizer: “Ai de vós… porque pagais o dízimo da hortelã, da erva-doce e do cominho, e descuidais da justiça, da misericórdia e da fidelidade… Guias cegos, que coais um mosquito e engolis um camelo!” (Mt 23,23-24). A cenografia religiosa — minuciosa e visível — encobre o que de fato importa. Por isso, a imagem do copo e do prato toca o centro da duplicidade: “Vós limpais o exterior do copo e do prato, mas o interior está cheio de rapina e intemperança… Limpai primeiro o interior, para que também o exterior fique limpo” (Mt 23,25-26). O Evangelho oferece, aqui, não apenas um diagnóstico, mas uma terapêutica, indicando que a ordem da purificação começa de dentro para fora.
Entre o romance e o Evangelho, as linhas de força coincidem. A hipocrisia é engenharia de fachada, economia do louvor, disciplina de olhares.
Em Hugo, o grande desmascarador é o mar — potência impessoal que arranca máscaras e expõe a nudez moral. No Evangelho, a luz é pessoal, Cristo, cuja palavra é bisturi e bálsamo. A diferença não é pequena. Onde o mar revela por catástrofe, Jesus revela para converter. O desvelamento, então, não é apenas ruína, é possibilidade que propõe a reconstrução da unidade perdida.
Deslocar a plateia do humano para o Pai “que vê no segredo” é a solução evangélica. Quando esmola, oração e jejum saem do teatro do aplauso e entram no recinto do amor, o coração reaprende a verdade sem cálculo. O critério torna-se simples e decisivo. Aprende a fazer o que é justo quando ninguém vê; desejar a misericórdia acima da performance; preferir a fidelidade silenciosa ao brilho. É assim que o exterior volta a ser transparência do interior, e não sua camuflagem. Daí a pedagogia do segredo (Mt 6,1-6.16-18), como antídoto à lógica de Clubin e aos “sepulcros caiados”.
Há hipócritas que amam o palco; outros o constroem. Os Fariseus pertencem ao primeiro grupo, Clubin ao segundo. Ele não apenas ocupa o espaço da virtude aparente, mas o edifica com paciência, cálculo e gosto estético pela própria máscara. “Ele era monstro por baixo; ele vivia em uma pele de homem de bem com um coração de bandido.” A sua probidade é montada tijolo sobre tijolo, gesto sobre gesto, até erguer uma fachada cuja solidez convence a todos — e, em certos momentos, quase ao próprio Clubin. Por dentro, porém, pulsa a ambição fria, desprezo pela verdade, um gozo de bastidores em manipular percepções. A hipocrisia, assim, não é simples mentira, é um sistema de vida.
Mas a hipocrisia cobra caro. “Passar por homem honesto é duro. Manter sempre isto em equilíbrio, pensar mal e falar bem, que trabalheira!” A máscara exige vigília ininterrupta, repreensão de afetos, medir as palavras, policiar os gestos. “Enganar continuamente, não ser jamais ele mesmo, iludir é uma fadiga.” O hipócrita torna-se um enfermo moral, não só porque mente, mas porque precisa sustentar a mentira: “Ter mentido é ter sofrido. Um hipócrita é um paciente na dupla acepção da palavra; ele calcula um triunfo e sofre um suplício.” Há horas em que o corpo protesta contra a falsidade engolida: “Beber perpetuamente sua impostura é uma náusea… há instantes de náusea em que o hipócrita fica a ponto de vomitar seu pensamento.”
“O hipócrita é um titã-anão.” Grande em cálculo e cena; diminuído em substância. “Há cavernas no hipócrita, ou melhor dizendo, o hipócrita inteiro é uma caverna,” por isso, quando a máscara enfim cai, há um êxtase perverso: “Arrancar a máscara, que libertação!” — não para a verdade, mas “para tomar livremente um banho ignóbil no mal”.
Victor Hugo nos presta um serviço moral ao personificar a hipocrisia; o Evangelho, por sua vez, abre o caminho de cura. De um lado, vemos a engenharia da máscara, sua sedução e seu custo. Do outro, a possibilidade de uma vida íntegra, onde o rosto não precisa mais de palco. Entre o mar que expõe e a luz que salva, o convite é o mesmo: permitir que a verdade faça em nós o trabalho que a mentira nos obriga a fingir. Quando a plateia muda dos homens para Deus —, a personagem cede lugar à pessoa, e a casa volta a ter uma única porta: a verdade.